Ele e Ela - um conto de Júlia Silva

Ele observa atento, o movimento da feira pela janela. Tanta coisa acontecendo bem abaixo de seus olhos, enquanto ela andava inquieta de um lado para o outro.·.

- O que está fazendo? - ele pergunta, já estirado e preguiçoso sobre a cama de casal.
- Arrumando ... Arrumando minhas coisas - ela diz como se não fosse nada sem olhar para ele, pegando um livro marcado pela metade em cima do criado mudo ao lado do abajur. Sua voz saiu calma e ficou abafada pela barulheira lá de baixo.·.
Depois de pouco pensar nas palavras da amada uma pergunta lhe atinge o cérebro como um clarão.·.
- Arrumando pra quê? - ele levanta a cabeça para olha-la.
Ela dá um suspiro arrogante, como quem não quisesse dar um suspiro.
- Eu vou embora - fala por fim.
Ele levanta ficando ereto como raras vezes ficará a observando ajeitar uma mala.·.
- Mas... Mas por quê?
- Isso não está funcionando mais.
- Isso o quê? - o rapaz pergunta como uma criança chateada.
- Nós - Ela diz apontando para si e depois para ele - Não seja ingênuo achou que ia durar para sempre?
Ele cruza os braços e abaixa a cabeça escondendo o semblante triste, desde quando ela se tornou tão fria?
- Posso pelo menos saber para onde você vai?
Ela o olha irônico depois voltando a pegar variadas roupas e socar na mala.·.
- Fiz alguma coisa de errado?
- Não, só... Sei eu sou complicada... Não é você sou eu.
- Inacreditável - Ele diz bagunçando os cabelos - Você diz que detesta clichês, mas acabou de dizer um.
- Você não me conhece tão bem quanto imagina.
- Não conheço?! - Ele diz indignado - Até ontem eu era o único que a compreendia...·.
Ela morde o lábio frustrada, fechando os olhos, ele a encarando querendo respostas coesas.·.
- As coisas mudam. Você é ótimo sabe, mas... - Ela não sabia mais concluir a frase, nem ela lembrava os motivos de deixá-lo. Eles migraram agora a cozinha.
- Mas... ? - Ele acariciou a bochecha dela com o polegar levando uma tapinha na mão em seguida.·.
"Olha o mamão!”, "Banana prata madura!" gritavam os feirantes lá embaixo.·.
- Preciso de um tempo, pensar, refletir... - Ela falou se afastando dele e pegando uma maçã da fruteira.
- Você sabe que isso não faz o menor sentido não é?
- Sabia no que estava se metendo quando me conheceu, tentei te avisar pra se afastar. Eu não sei de muita coisa, não tenho certezas, até parece que não me conhece...
- Acabou de dizer que não te conheço! - falou levantando os braços acima da cabeça - A mais ou menos, dois minutos atrás!
Ela rolou os olhos com desdém, do jeito que ele detestava, parecia que não se importava mais.·.
- Olho, eu sei que você não quer entender e está bravo.
- Eu entenderia alguma coisa se você explicasse algo direito - resmungou.
- Não tem o que explicar... Só acabou.
Aquilo foi o suficiente para quebra-lo ao meio.
Ela fez a melhor cara de compreensão que pode e afagou o ombro dele. Deu um beijo rápido em sua bochecha, dizendo:·.
- Não deixe que isso atrapalhe de seguir em frente, não podemos deixar que isso impedisse de evoluir.·.
Ele nada respondeu, permaneceu paralisado.
Ela sorriu torto para o silêncio e foi ajeitar mais algumas coisas na mala que ela sabia que não ia caber tudo. Foi-se indo devagarinho o barulho das rodinhas trincando no chão, ela abriu a porta da frente, olhou para trás apenas para observa-lo desolado no meio da cozinha ainda em pé com os olhos fixos em algo. Escancarada ela deixou a porta prevendo que ele correria atrás dela... Pois não é que correu?
- Você esqueceu o cachecol que eu te dei! - gritou ele para ela em meio às pessoas que compravam as mais diversas coisas na feira.·.
Ela olhou para trás avistando o pano xadrez em suas mãos.·.
- Pode ficar... Ou melhor, eu volto para buscar depois! - Ela gritou se afastando mais e mais.
- Quer dizer que você vai voltar? - exclamou na esperança.
- Você entendeu o que eu quis dizer... - falou ela claramente no barulho de vozes misturadas das outras pessoas, ela não o percebeu murchando novamente.
Há três anos ele a conheceu e em pouco tempo tudo se tornou "nosso" tudo se tornou "nós". Por que agora havia coisas "dela" e coisas "dele”? Tudo se partiu tão rápido.
Ele ficou a pensar nisso, com o cachecol em suas mãos, parado no meio da feira que ele lembrava fazer com sua mãe, observando estática a mala vermelha (a mala que era dele) enquanto as pessoas esbarravam em seu corpo como se ele só fizesse parte do cenário.·.
- E aí moço vai uma banana prata? - O feirante o tirou de seu transe.·.

- Meia dúzia, por favor - ele disse limpando a lágrima que escorreu por seu rosto.
Ele logo voltou para seu apartamento e observou as coisas que eram dele e as coisas que eram dela e em como as duas só faziam sentido em sua cabeça por terem sido um só.
E a feira continuou com sua gritaria e barulheira depois partiu. Ele observou tudo isso da janela tentando entender que a feira voltaria no outro sábado sendo tudo igual era ele que tinha mudado. E ela também.

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